Em 2017 eu fiz um debochado “Guia SP para cagar fora de casa”, que teve alguma repercussão na época e dizem por aí que até foi copiado. Fico feliz de ter feito essa importante contribuição para a sociedade.
Na época as pessoas comentaram quais os seus banheiros públicos preferidos na cidade. Eu havia colocado no topo o banheiro do Espaço Unibanco de Cinema, que estava naquele longínquo ano, sempre vazio (especialmente à tarde ou em lançamento de filme nacional) e limpo. Mas a audiência de comentaristas escolheu com folga o banheiro da Tokyo House, na Avenida Paulista, segundo eles um banheiro que era uma experiência de carinho high-tech. Não conhecia a maravilha arquitetônica e tecnológica, mas fui convencido pelos relatos.
O meu texto não saiu somente porque na época eu ainda era CLT e, acreditem se quiser, tinha apenas uma ocupação e, portanto, tempo pra pensar nessas coisas. Ele surgiu porque eu sempre achei um sinal de que algo estava muito errado no nosso modelo social, a questão de ser uma situação próxima ao humilhante precisar usar um banheiro acessível em uma grande cidade. Toda vez que eu precisava usar eu pensava, porque essa cidade e em última instância, esse mundo me odeia? Ou odeia qualquer um que precise atender às necessidades fisiológicas na rua? Ou o problema não era nem as necessidades, nem ser na rua, mas o fato de ser gratuito?
Eu me sinto hostilizado especialmente se vou num lugar cujo uso do banheiro é venda casada, ou seja, só para clientes, e chega lá e simplesmente não tem papel higiênico. Ou ainda aqueles lugares que guardam o papel higiênico no balcão que é já para constranger o cliente trancando as pernas de ter que ir pedir o papel pro atendente. Qual é o sentido disso?
É algo que todos precisamos fazer e fazemos mais ou menos ali da mesma forma, podemos supor, embora tenha gente que por algum motivo seja exageradamente tolerante com a imundice.
Eu até achei por um tempo que isso era uma preciosidade da minha cabeça, uma frescura, tem gente que tem paladar infantil, talvez eu tivesse intestino infantil, eu não sei, talvez fosse algo que a maioria das pessoas nem pensa ou não liga, vive-se e, por conta disso, sempre há alguma coisa mais importante para se resolver do que questionar os mecanismos opressivos que tornam a vida essa pequena linha de produção de pacotes de humilhação.
Mas finalmente em 2024 eu pude, pela forma da arte, compreender aquilo que me inquietava nessa dinâmica e que só conseguia retribuir na forma de textos debochados. Devo isso ao filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders.
Não darei detalhes do filme, mas preciso dar a premissa básica para desenvolver o raciocínio aqui. Acompanhamos no filme a rotina de um trabalhador que faz a limpeza e a manutenção dos banheiros públicos de Tóquio.
O diretor alemão resolveu fazer o filme depois que foi chamado pelo governo municipal de Tóquio para fazer um curta-metragem sobre os banheiros da cidade e a reação do diretor deve ter sido a mesma que a minha: maravilhamento.
Não, eu não estou exagerando. Quando a gente fala de serviços de uso público, mesmo em países de primeiro mundo, existe uma espécie de convenção ordenada pela lógica capitalista de que deve ser, ou talvez até precise, ser ruim, precário e às vezes até indigno.
A forma de organização social passa pela noção de direito, somos sujeitos produtos dessa noção, ou seja, tudo que nos acontece em termos sociais é porque se tem a ideia de que temos direito a certas coisas, isso simplificando bastante. Por exemplo, grosso modo, você não compra uma casa só com dinheiro, você compra uma casa com dinheiro desde que este dinheiro seja legalmente válido e portanto, reconheça o seu direito nesta transação.
Eu não posso comprar uma casa com clipes de papel ainda que tenha milhões de clipes de papel e o valor deles somado dê o de uma casa, pois clipes de papel não é uma moeda legalmente válida, ainda que eu diga ao corretor “Isto é dinheiro”.
Em tese isso nos permitiria crer que o direito é a grande cola que prende e conecta as estruturas gerais da nossa sociedade e o dinheiro (o capital) estaria subordinado ao direito.
Bom, essa é a grande disputa aqui, pois eu, você e todo mundo que lê este texto sabemos bem que na prática ter menos dinheiro é ter menos direitos.
Eu vim de um lugar e época em que as pessoas próximas diziam que um dia queriam ser “bem de vida”. Rico? Rico não, rico não preciso, dá muita dor de cabeça, eu quero ser só bem de vida.
Aí você vai tentar esmiuçar o que é ser bem de vida.
Acesso à saúde, poder viajar de vez em quando, comer coisas legais, poder dormir numa cama boa, geladeira que não falte nada de importante e que tenha algumas coisas gostosas também, vestir bem, sem luxo, apenas pra me sentir bem, para proteger do frio quando estiver frio e refrescar quando estiver calor.
E o banheiro, hein?
Limpo, cheiroso, claro. Confortável.
No básico do básico ser bem de vida era isso. Hoje deve ser a mesma coisa, mas enfia aí uma TV do tamanho da parede pra alguns. Tá tudo certo também, deixa ter a TV do tamanho da parede, mas tirando ela e uma ou outra coisa, a tradução da maioria desses desejos tem a ver com ter direitos.
Esses direitos, que em outras épocas poderiam ser “divinos” ou hereditários, hoje, teoricamente, obedeceriam a uma certa lógica de funcionamento da própria sociedade. Por que seria interessante termos acesso a banheiros públicos decentes? Porque as ruas ficariam mais limpas, porque as pessoas transitariam nas ruas com mais tranquilidade, porque afetaria a saúde das pessoas, afetaria o bem-estar das pessoas, em suma, a sociedade funcionaria melhor.
Agora veja, Tóquio não é uma cidade de um país comunista, mas quando você assiste Dias Perfeitos, que, veja bem, é uma jornada muito particular e humana e que tem como fundo esse trabalhador cujo trabalho é manter esses banheiros impecáveis, você entende que a cidade fez uma aposta que funcionou inclusive como um produto de marketing de sofisticação. Aparece no filme os tais “banheiros transparentes” que ficam opacos quando alguém os está utilizando e que foram construídos na época das olimpíadas e são um sucesso até hoje. É um objeto estranho, curioso à primeira vista, um banheiro público transparente, mas como design é uma ideia genial, você não precisa entrar no banheiro para ter certeza que ele está limpo, organizado e desocupado.
O filme não dispensa, é claro, mostrar que o trabalhador está inserido em uma escala hierárquica social típica do capitalismo, que opera como um fantasma, não sendo visto, não por ser transparente, mas por ter uma função que não é atribuída ao sucesso e ao poder.
Os tais banheiros enunciam também uma série de outros problemas, mas ainda assim, feito esse comentário, devo dizer que são realmente singelas maravilhas em um mundo hostil.
Se fala muito das várias crises simultâneas do nosso tempo, que podemos simplesmente chamar de crise generalizada. A crise das instituições, a crise da democracia, a crise do trabalho, a crise do meio-ambiente e muitas outras. Mas lá no tutano dessas crises parece existir também o colapso da noção de direito.
Quando você planeja um genocídio, primeiro se estabelece que você tem o direito a isso e que a etnia massacrada não tem direitos. Alguns têm direito à terra e à autodefesa, outros não. Alguns têm direito a alimentos e segurança. Outros não. Alguns, mesmo mortos, têm direito a dignidade. Outros não, nem a dignidade, nem a memória.
Eu poderia amarrar dezenas de notícias recentes, seja do cenário geopolítico, seja do noticiário de segurança pública, no campo da saúde, da educação, e claro, da justiça, muitas, para ilustrar essa corrosão. Mas vou me prender apenas a uma questão lógica, que, tenho certeza, alguns que leram este texto pensaram.
Isso não daria certo em qualquer lugar. No Brasil, se você botar um banheiro assim todo mundo vai quebrar em duas horas. Vai virar uma imundice. Vai ser a cabine da droga. Vai ser motel improvisado. E várias outras coisas que podem ter passado pela sua cabeça.
Não julgo, essa percepção é justificada e plausível. Acontece que por baixo dessa história eu reflito sobre se é possível você cuidar de algo a que você sente que não tem direito.
Você vive e cresce conhecendo que, no limite da realidade, quase não tem direito algum. Que o seu papel é trabalhar e suportar e depois voltar a trabalhar. Você aprende a função de que dinheiro é igual a direitos e todo resto se articula a partir disso. É por isso que muita gente tem horror ao que é público, especialmente se puder ser algo bom. Porque é uma ideia muito perigosa, imagina, deixar as pessoas acreditarem que elas podem ter direito a algo bom sem ter que pagar.
Apenas porque isso faz sentido.
Nem precisa de parede transparente para saber o que estaria dentro dessa ideia.
Eu já escrevi de muitas maneiras sobre dignidade nos meus textos porque acredito mesmo que ela carrega transversalmente grande parte das lutas que estão sendo travadas hoje em muitas frentes.
É que dignidade é o estado do mundo no seu corpo.
Você sente não ser nada em um mundo que não te dá nada. E por não ter nada, você vai devolver o quê?
Banheiro transparente é um caralho, eu vou mijar nessa porra toda e o próximo que se foda.
“O próximo que se foda”.
É o que está escrito na placa de boas-vindas na entrada desse lugar que habitamos, juntando clipes de papel, com a esperança de um dia sermos bem de vida.
Genial a analogia entre a sofisticação do banheiro "transparente" e a "invisibilidade" do trabalhador da limpeza. E me lembrei muito da ótima cena do seu livro "Quem é essa gente toda aqui?" que se passa no banheiro de uma cafeteria. (Fica a dica para quem ainda não leu).
E quem nasce com o direito do dinheiro garantido e sempre toca o “o próximo que se foda”? E quem respeita o público do estrangeiro e esculhamba o do país natal? Eu vivo diariamente com a impressão de uma crise da ética, algo que parece que a humanidade fez embatumar, um projeto fracassado...