Meu pai está com poucos dentes e dorme a maior parte do dia. Não sabe nem a quantas anda o futebol, nem mesmo a novela das nove. Eu o vejo sempre de passagem, a depender do dia ainda fala do tempo, está sempre frio demais, calor demais. Na maioria das vezes cumprimenta e passa da cozinha pro quarto, do quarto pro banheiro, do banheiro pro quarto.
Em dias úteis, trabalha. Tem 76 anos.
Somos estranhos. Nunca tivemos uma conversa acerca de qualquer assunto da vida. Mas sempre esteve calor demais ou frio demais. E também existiam muitas histórias sobre as pessoas na televisão e nomes de passarinho. Em algumas madrugadas existiam as lutas do Mike Tyson. O Mike Tyson me apresentou a madrugada sem ser em noite de virada de ano. Era uma permissão. Pena que 22 lutas acabaram no primeiro round.
Em 2018 meu pai me disse que talvez Bolsonaro seja um cara que queria fazer boas coisas. Eu disse que ele queria acabar com a aposentadoria, ele respondeu que então ele não presta, não. Só o pior tipo de gente quer roubar a aposentadoria dos outros.
Existem muitas pessoas ruins no mundo. Eu já achei que meu pai era a pior pessoa do mundo porque ele era violento e autoritário, mas só em casa. Na rua ele era boa praça. Eu gosto da expressão boa praça, sei lá por quê. Meu pai não era boa praça em casa, demandava ser servido antes de qualquer outro membro da família. Quando era alcoólatra ele quebrava as coisas em casa.
Em toda a minha vida o chamei de pai pessoalmente só uma vez, quando ele pediu e eu tinha cinco anos. Por mim ele sempre foi chamado de Tonho. O Tonho tá de fogo era sinal de que ele estava bêbado e coisas ruins iriam acontecer.
Um dia ele desapareceu por um dia ou dois e voltou dizendo-se curado da bebida. De fato nunca mais bebeu. O que aconteceu nestes dias ainda é um mistério. Mas hoje não acho meu pai a pior pessoa do mundo.
Em algum momento você ganha a altura parecida com a dos seus pais e com isso chegam ao fim as idealizações. Depois parece que ele é que foi encolhendo. Mas antes disso, bem antes disso meu pai arrumou um emprego logo depois de se tornar sóbrio. Ajudante de limpeza numa loja de carros de luxo. É seguro dizer que meu pai já deve ter passado pano em um carro cujo valor é maior do que todo o dinheiro que ele já ganhou em vida.
Meu pai ganhou um uniforme e certos direitos trabalhistas. Todo fim de ano tinha cesta básica de natal. Da cesta eu lembro bem de um tipo de salsicha ruim, enlatada, e só comi aquela porcaria porque vinha na cesta. Ainda assim era legal. Em uma breve fase das nossas vidas, quase todos meus irmãos estavam trabalhando também e comparávamos as cestas de natal.
Houve um ano que meu pai, já uma espécie de entidade da firma, ganhou um câmera fotográfica digital. Ele passou a tirar fotos da minha mãe. São fotos de bom gosto. Sei lá, não entendo de foto, minha mãe aparece bonita nelas. As pessoas também faziam festa de aniversário para ele, o Seu Tonho.
Os anos e os natais foram passando, as cestas acabaram, certos direitos trabalhistas também. Em 2019 a OMS deu o alerta mundial de um novo vírus com potencialidade de se tornar uma crise global. Meses depois a firma avisou que teria que ficar por um tempo fechada por conta do lockdown.
A firma prometeu que não iria cortar benefícios.
A firma cortou benefícios. E parte do salário.
A loja de carros de luxo considerou um problema financeiro manter meia dúzia de faxineiros com o salário integral. Passadas algumas semanas, contrataram um novo chefe. Salvo engano o anterior era um senhor que morreu de Covid. Esse novo chefe era jovem e precisava dar um jeito na pauperíssima condição financeira da loja de carros de luxo. Um a um foram demitindo a equipe de limpeza e terceirizando a função. Meu pai com mais de 20 anos de casa sobrou sozinho, mas sabia que poderia ser o próximo. Pediram para ele tirar férias. Convencido a provar que sua contribuição na empresa ainda poderia ser valiosa - e ele tinha razão conforme descreve matéria do jornal O Globo de 28 de maio de 2021 entitulada “Crise? Que Crise? Mesmo com pandemia carros de luxo tem explosão de vendas” - carros esses que não se limpam sozinhos - meu pai resolveu trabalhar nas férias e treinar os novos funcionários terceirizados.
O sr. tem certeza, seu Tonho? Não podemos pagar por isso.
Ah, não tem problema, faço isso pelo bem da empresa.
E ele foi e trabalhou de graça durante a pandemia. No primeiro dia após as férias meu estava convicto de que conseguira manter sua vaga. Foi chamado ao RH. Pediram o seu uniforme e crachá, inútil há tempos, pois todo mundo sabe quem era seu Tonho, e o demitiram. Não houve acordo, a decisão já havia sido tomada, mas agradeceram pelos serviços prestados. Por cerca de um mês meu pai continuou saindo de casa como se fosse trabalhar e ficava parado num banco em frente à firma, assistindo as pessoas. Assistindo os carros. Depois precisou parar pois já estava estranho, o seu Tonho indo ali todo dia.
Arrumou outro bico e hoje vive de passagem. Seu tonho não está mais de fogo, está encolhido e apagado. E o Mike Tyson? Lutou recentemente contra um boxeador influencer - ou influencer boxeador, algo assim -, aos 58 anos. Um evento da Netflix. Assisti pela nostalgia embora tenha me custado ficar acordado até de madrugada. Ainda é muito forte e intimidador, mas seus reflexos não são os mesmos, só que, se a porrada entrasse, seria fim instantâneo da luta.
Tyson ganhou os dois primeiros rounds, perdeu os outros seis. O influencer manteve distância segura e isso foi tudo. Uma garota de 14 anos em uma entrevista para um canal de TV perguntou sobre seu legado. Tyson respondeu que não acredita na palavra legado. "Não, não somos nada. Estamos simplesmente mortos. Somos pó. Não somos absolutamente nada. Nosso legado não é nada."
Tyson ganhou 20 milhões de dólares e meu pai nunca mais tirou uma foto. Não há acordos e legados. A loja de carros de luxo voltou às atividades com uma grande festa de reabertura.
Sei nem o que dizer... que texto foda: coragem, clareza, dureza. É algo que ainda não consegui elaborar sobre "Brincadeira sem futuro"... cada texto abre um pequeno abismo, mas não parece que caímos; algo nos segura suspensos. Parabéns pela forma como vê a vida, pelo que consegue mostrar da vida, por achar as melhores palavras e formulações para mostrar.
Que texto bonito, Ricardo. É incrível a sensibilidade com a qual você escreve as partes mais difíceis dessa história. Fiquei com a mesma sensação do Tarso: suspensa de cara pra um abismo. E acho que o que nos mantém suspensos é justamente a sensibilidade que você tem na escrita do texto. E tem também uma generosidade sua de compartilhar essa história conosco. Obrigada!