Existe um tema muito sensível na minha vida: dinheiro, ou melhor, trabalho.
Quinhentos reais pra ficar sentado quatro horas conversando?
Esse foi o primeiro pensamento, um choque franco, quando fui convidado pra minha primeira “roda de conversa", em 2016.
Veja, eu não tive formação política, artística ou intelectual, pelo menos não nos moldes tradicionais. Era um terço do meu salário pra conversar sobre “os caminhos da esquerda” no Instituto Goethe. Na mesa, Tatiana Roque, Suely Rolnik, Andreza Delgado e mais uma turma. Eu nunca tinha ouvido falar em ninguém ali.
Semanas antes, minha vida era vender roupa e dobrar calça na Forever 21 da Avenida Paulista e almoçar na Casa do Pão de Queijo. No público, jornalistas, estudantes, etc. Eu sempre penso nesses quinhentos reais porque foi simbolicamente a abertura de um mundo que eu não fazia ideia de como era por dentro: o minúsculo universo da Comunicação & Artes da classe média de São Paulo.
Em 2016, pra variar, a esquerda progressista de classe média estava procurando novas vozes que tentassem explicar pra eles que merda era aquela que começou a acontecer e que deu na derrubada da Dilma. Meus textos viralizaram e, por um breve período, quando o Facebook era mais relevante, eu fui uma dessas vozes do momento. Nenhuma das análises de “erros da esquerda” que hoje virou pauta-mato são novidades pra mim.
Também não sei se fui meio petulante, mas sempre fui de conversar com pessoas de todo tipo, dos caras que eu trampava quando era reciclador de metais (e a gente parava nesses barzinho bem de quebrada que é só uma janelinha numa garagem e garrafas de todas as cores que podem conter produtos de limpeza, pinga ou ambos) até professores universitários.
Certa vez, um pesquisador de doutorado da Universidade de Londres me entrevistou e, ao fim da conversa, ele perguntou algo que nunca esqueci: “De onde vem a sua inteligência?”
Foi uma pergunta sincera, de um preconceito sincero após descobrir que meus pais são respectivamente um auxiliar de limpeza e uma ex-empregada doméstica, que estudei em escola pública, que cresci no extremo leste e que, naquela época, eu dei o nome de “hipercubo social” pra algo que mais tarde fui descobrir ser chamado de “câmara de eco” ou “circuito de crenças”.
Mais tarde eu escrevi um texto respondendo que a pergunta interessante não era de onde minha inteligência veio, mas “pra onde ela vai?”. Frase de efeito à parte, eu estava errado: a pergunta “de onde minha inteligência veio” é sim super relevante, porque ela define pra onde ela vai, ou melhor, pra onde ela pode ir. Tudo vai depender se nesse mercado das ideias você aceita ou não o papel que querem te dar.
Pros meus padrões, eu fiquei sim chocado com o dinheiro que rolava principalmente na publicidade. O jeito que fui ensinado a trabalhar era totalmente diferente e tive que me adaptar. É um clichê, mas nesses espaços se autopromover é muito mais importante do que entregar.
Uma das histórias mais curiosas da minha vida é quando eu fui demitido por engano e meu chefe só descobriu 2 meses depois. Acabei fazendo frila pra própria empresa da qual fui demitido.
Nos trampos de antes, a coisa boa era trabalhar discretamente e não se envolver em confusão. Trabalhar certinho pra ninguém lembrar que você existe. Receber em dia e tudo certinho era o mote. Na comunicação, você precisa lembrar o tempo todo que você existe, ainda, especialmente, fundamentalmente, se você não for um deles.
Um deles quem?
Vamos lá, todo mundo sabe quem são eles, alguns deles, quem sabe, talvez até leiam este texto e pensem “é mesmo, eu sou um deles.” Não quero desmerecer profissionalmente essas pessoas, mas é gente que nunca teve a ansiedade de ter pagar o aluguel. Pessoas que sempre tiveram alguém disponível para “ouvir seus projetos”, pessoas que podem errar.
Sabe aqueles documentários doidos que imaginam como seria a vida em Netuno ou no planeta B78GGhX2? Então, pra mim pessoas que nunca tiveram o estresse real da falta de dinheiro são alienígenas, tenho o impulso de me comunicar com elas usando roupas especiais e uma lousa, como no filme A Chegada.
Mas enfim, lembrar o tempo todo que você existe é um trabalho, mas cansativo mesmo é lembrar que, além de existir, você pensa. Esquece, me adiantei. O que cansa mesmo é, além de lembrar que você existe e pensa, lembrar que você merece ser remunerado pelo trabalho de pensar.
Meu choque, no fundo, no fundo, não foi ser remunerado pra ficar sentado 4h numa roda de conversa. Foi ser remunerado pelas minhas ideias.
Eu tô simplificando um arco de reflexão extremamente complexo e muito longo. São muitas e muitas etapas pra um pessoa como eu chegar a essa conclusão. Quanta porcaria eu salvei de ser um projeto medíocre, nem tenho como te contar sem parecer arrogante. Aliás, esse pecado, ser arrogante, esse vulto ronda minha cabeça o tempo todo. Será que se eu falar que quero isso, que fiz aquilo e que sei daquilo outro eu seria arrogante?
Na dúvida, depois de até tentar me adaptar, eu adotei a roupa antiga e fui, também movido pelo cansaço, entrando na técnica antiga, escondendo conforme possível que eu existe e penso. Os textos foram sumindo, mas eu sou bom de trabalho, eu aprendo rápido, não faço firula e entrego, então consegui me estabelecer.
Poucas pessoas até então conhecem a história que vou contar agora. Um mês depois da roda de conversa eu peguei um frila onde fiz uma palestra que envolvia a minha vida e escolhas que fiz. O termo técnico é “arregacei”. Traumatizei dono de agência quando contei que dormia em “S” porque tinha tanta goteira em casa que não havia lugar onde não pingasse na cama. Mas não fiz isso de trucagem, com história de superação, eu fiz isso entre piadas de fliperama e chinelo de prego. Botei a foto da minha mãe no Keynote. No fim do dia, um diretor de uma empresa de análise de dados me chamou pra um papo. Na conversa ele me ofereceu um trampo assim “Quanto você ganha na loja? A gente cobre. Entra aqui, te ensino tudo sobre o trabalho. Não é algo intelectual, aqui a gente ensina que foto decotada dá mais clique em vídeo do Youtube, mas é algo que você pode aprender e usar em coisas legais”
Assim, de mão beijada um trabalho numa das áreas mais promissoras do mundo. Demorei 3 dias e depois recusei. Eu estava começando a ter destaque nos meus textos e a minha conclusão na época foi de que isso me afastaria do meu caminho. Burrice? Autenticidade? Os dois? Eu ando repetindo uma coisa pra pessoas próximas: todas as escolhas são boas e ruins. O tempo muda o significado.
Esses dias ouvi em um trabalho “Terto é um cara dos bastidores”. É isso, sendo um técnico eficiente eu pago minhas contas, moro bem, se comparado a onde morei, durmo esticado e ajudo minha família. Mas me cansei do meu cansaço. Estou retomando textos, essa newsletter e meu podcast Cabeças Falantes são partes dessa história. Quero acreditar que um dia serei remunerado pelas minhas ideias, pela qualidade do meu texto, por resolver problemas com todo esse repertório que vem do barzinho-janela ao prêmio Vladimir Herzog. Vivo nesse mundo ainda alienígena pra mim, visto minha roupa especial, sinto que se tirar esse capacete o ar vai me faltar, mas ainda estou por aqui, eu existo, penso e trabalho, respiro.