O texto de hoje é uma crônica inédita. Em outubro lanço meu novo livro de crônicas, mais novidades em breve. O texto abaixo não faz parte do livro.
Anos 90. No centro comunitário do bairro, naquela época, começaram a oferecer alguns cursos que, sinceramente, não me lembro bem do que se tratavam. Tinham algo a ver com preparação para o mercado de trabalho, algo assim. Pouca gente acredita, mas eu já fiz aula de datilografia, que curiosamente era logo antes da aula de informática. "Professor, o que quer dizer www?" "É como começa o endereço do site." "Tá, mas o que é dabliu, dabliu, dabliu?" "Sei lá, você pergunta o que significa CEP?" "Pergunto!" "Tem sempre um engraçadinho, né?"
O instrutor estava certo, sempre tinha um engraçadinho, nem sempre era eu. Mas às vezes eu me esforçava.
Aconteceu algo curioso entre os meus 5 e 11 anos: eu passei a ter vergonha de parecer inteligente, então comecei a procurar outros papéis disponíveis. O mais democrático era o do engraçadinho, não o engraçadão, que talvez necessitasse mais massa muscular (e graça). Ser o engraçadinho é anular qualquer expectativa sobre si, tornando-se livre, semi-invisível e escapando.
Mas o que significa escapar? Sei lá, tem sempre um engraçadinho, né?
Acontece que a farsa é um truque simples, basta qualquer ventinho de autoconfiança e o véu da semi-invisibilidade se rasga. No meu caso, isso sempre acontecia quando havia a necessidade de escrever algo. O tema da redação era “Como eu vejo o futuro”, para encerrar o curso livre cujo tema eu nem lembro, Cidadania? Suponhamos que fosse Cidadania, e acontecia antes da Datilografia e da Informática.
Distraído, resolvi escrever algo bonito, ou o que eu achava que era bonito, do mais absolutamente nada. No dia da leitura, a instrutora começou assim: "Gente, eu vou ler algo aqui que, até onde eu pude pesquisar, não é plágio."
Ela disse isso muito séria, ok? Ontem mesmo ela estava ali, tantas horas da noite, pegou a folha com meu nome e pensou: “Ah, puts… o engraçadinho”. Refletiu sobre as escolhas que fez na vida e, principalmente, sobre as escolhas que não fez, pra você ver o quão séria era a expressão dela no dia da leitura. E, de repente, um texto bonito.
Quando ela começou a ler, eu virei um buraco dentro de mim mesmo, completamente arrependido. Ali eu descobri que causar um incêndio com o poder do pensamento é altamente improvável. Transformar alguém em pedra também. Entre outras coisas que, com toda a força mental, eu tentei. Ah, eu juro que tentei. Mas ela continuava a ler, e a turma foi fazendo aquele silêncio desgraçado, pessoas se entreolhando. Silêncio, leitura, olhares, mais leitura, porra, eu escrevi quatro folhas? Tem tanto futuro assim pra ser visto, quatro folhas?
Terminou. Aplausos, alguns obrigatórios, outros irônicos e, pior, alguns eram de fato apenas aplausos. A instrutora pergunta:
"Quem vocês acham que escreveu isso?"
Olha, se foi aula de Cidadania, acho que naquele momento eu devo ter odiado isso, seja lá o que fosse. Foda-se a Cidadania, viva a Datilografia e a Informática. "Datilografa aí, moleque, o que você vê no futuro?" / "eu-vejosuabund-a professo-r" (eu era ruim com espaços, ainda sou) e pronto, estava resolvido, engraçadinho.
Mas não, eu tinha que complicar e escrever quatro folhas de negócio bonito pra instrutora de Cidadania (?) propor o desafio da turma descobrir quem escreveu aquilo que, por mais que ela tenha pesquisado, não era plágio.
"Foi o Fulanelson?" "Foi não."
"Foi a Cicraneide?" "Foi não."
"Foi o Ricardo."
"Quem?"
"O Ricardo" - e aponta pra mim.
(Transforme-se em pedra e exploda imediatamente no três. Um, dois -)
- "Ricardo, conte pra gente..."
(Três! Três! Eu disse três!)
"...como você escreveu isso?"
Muito obrigado pela pergunta, foi com as mãos.
Ela não riu. Insistiu.
"...mas no que você estava pensando?"
Secretamente, eu fiz a mesma pergunta. Eu não tinha nenhuma gracinha para falar.
Não sei, acho que estava pensando nessas coisas aí mesmo.
Ela disse, "tá bom", daí esperou um tempo, cavoucou alguma coisa na minha cabeça e depois encerrou com um "obrigada".
E foi para o restante das redações.
O silêncio durou mais um pouquinho e depois foi se desfazendo até virar ruído, buzina ao longe, gente imitando arroto, motor de moto e de outras máquinas, como a de escrever. No fim da manhã, depois de todo o meu medo de parecer inteligente, ninguém lembrava mais da redação. Todos estávamos prontos para descobrir mais sobre as maravilhas de se mandar um e-mail.
"E quando a gente vai aprender a mandar um inteiro, professor?"
Engraçadinho. Mas essa piada não fui eu quem fez.
Muito bom, como sempre. Feliz de saber que logo, logo terá um livro cheio delas para eu ler.
E vc por acaso se lembra o que tinha escrito nas "quatro folhas de futuro"?