Na semana passada, dei um rolê com o escritor José Falero e entramos num papo que ressoou na minha cabeça desde então: existem coisas que só acontecem a partir de um certo volume de tempo. São coisas que não cabem no espaço curto, no imediato - e nada contra o breve, mas o tempo acumulado também produz suas peças únicas.
Intimidade, por exemplo, intimidade real e não apenas convivência, intimidade que independe da euforia ou da fantasia me parece ser um produto do tempo. Nesse mesmo rolê fomos parar num bar de bilhar e tive uma Masterclass de sinuca. Em algumas partidas o paciente professor me ensinou conceitos e particularidades do jogo que agora me parecem óbvias, como a lógica geométrica, mas é o tempo que produz essa facilidade, tanto de enxergar o óbvio quanto de superar o óbvio.
Acostumado com a inclinação e curvatura da mesa - cada uma tem a sua; outro produto do tempo -, ficou óbvia a distância de técnica entre o aspirante e o jogador, mas fiquei feliz quando em duas ou três oportunidades a jogada que eu imaginei aconteceu magicamente conforme planejado. Magicamente não, geometricamente.
A sinuca me pareceu um jogo sobre encontrar caminhos dentro de padrões, linhas, pesos e ângulos, além de uma certa performance, afinal, uma jogada incomum causa aquele instante de maravilhamento em quem assiste, e acho que essas jogadas são as lembranças que ficam, elas são o espírito da partida. Ou seja, sinuca e escrita têm uma relação inesperada. Quem escreve deseja sempre acertar a caçapa que ninguém espera, mas é o tempo que produz o olhar para as linhas improváveis.
Muitas vezes fui considerado um sujeito lento. Embora eu aprenda as coisas muito rápido, frequentemente me obcecando por um tema, há coisas que só entendi pela intimidade. Estou colocando “aprender” e “entender” como coisas diferentes. Uma coisa é aprender as regras de um jogo, outra coisa é entender sobre o que de fato o jogo é. E mais do que aprender, há coisas que eu gosto de entender.
Nunca me senti confortável em fazer algo apenas porque é assim que se faz, - mas por quê se faz assim? Porque é assim que se faz. Claro, essa inquietação não cabe no mundo da hiperprodutividade e especialmente em quem não cresceu em família de classe média alta ou rica. Descobri como me virar no eterno breve que viraram as relações de trabalho, mercado e afetos, mas nem sempre correspondo às expectativas, e todo o processo de pressão e baixa autoestima geraram uma ansiedade com a qual vou ter que lidar pro resto da vida. No caminho perdi muitas coisas sobre mim, mas que agora começo a reencontrar. Não porque eu tenha mais tempo. Na verdade, eu nunca tive tão pouco tempo livre na vida adulta, eu nunca trabalhei tanto e nunca estive tão cansado, nem quando eu emendava trabalho com faculdade numa rotina de 15 horas.
É que descobri que uma ideia, um desejo, pode ficar por muito tempo dando voltas na cabeça até virar uma palavra, e o silêncio antes da palavra também é uma criação. Falero me contou que às vezes, quando não tinha ninguém pra jogar com ele no bar, ele ficava lá jogando sozinho, aprendendo e entendendo. Por isso que eu acho que a criatividade é uma dimensão do tempo, ela fica lá jogando sozinha na intimidade dos nossos pensamentos, ainda que a gente não perceba.
Me sinto muito cobrado, e acho que a maioria das pessoas também, de entregar alguma novidade o tempo todo, a vida toda como stories que vão desaparecer em 24 horas. Eu não tenho o privilégio de não correr, de não ser imediato, eu vivo de pagamentos, mas aos 38 anos, pelo acúmulo de tempo, eu estou descobrindo as particularidades dessa mesa, a inclinação que surge do gasto, o peso e a força necessária (às vezes é mais, às vezes é menos) e vez ou outra eu vejo a geometria, as linhas fazem sentido e a jogada faz o jogo todo valer a pena.
Lembrei muito desse texto aqui do Joaquim Ferreira dos Santos sobre um dia de estudio do Paulinho da Viola
https://radiobatuta.ims.com.br/podcasts/cronicas-do-joaquim/paulinho-da-viola-e-o-samba-da-criacao
Olha aí vc despertando meu complexo de Édipo de novo...rs. Eu colocaria de título desse texto: "A inteligência do Sr Toninho". Sim, meu pai. Uma inteligência que apenas a instrução de Tapeceiro do SENAI nunca me explicou totalmente. Cresci vendo problemas "magicamente" solucionados por ele, mas agora, com quase 50 anos, com meu próprio tempo sendo depurado, olho pra trás e vejo que esse "tempo da sinuca" estava lá sempre com ele, era a mágica. Tinha o olhar para a "mesa", para "as posições das bolas", para o "adversário", sempre teve a análise da "geometria da situação" e junto as companhias implacáveis da coragem e da segurança em arriscar as "tacadas". As belas jogadas e os acertos davam repertório e estímulo para continuar nesse esquema de jogo. Com 78 anos, ele ainda tá passando o giz e analisando qual e como será a próxima tacada...
Obs: ele também sabe jogar sinuca e eu sempre me deslumbrei com isso e não sabia muito bem o porquê, seu texto construiu esse sentido. Obrigada <3