Em 2019 o Instituto Datafolha divulgou uma pesquisa mostrando que 7% dos brasileiros acreditam que a terra é plana. Isso dá 11 milhões de pessoas, ou seja, mais pessoas no Brasil acreditam na terra plana do que acreditam no Vasco.
Onze milhões de pessoas acreditam que se você pegar um retão no mar, vai sair num tobogã cósmico direto pro abismo ou numa barreira de gelo.
Mas eu não quero falar sobre terraplana e sim do seu termo derivado, o terraplanismo.
A apelido é dado a crenças absurdas que vão contra diversas evidências. Isso é mais um meme do que uma classificação antropológica, mas pegou e surgiram então as listas do tipo “Qual é o terraplanismo da sua profissão?” por exemplo, “Qual o terraplanismo do mercado financeiro?” cuja resposta é “O mercado financeiro”.
Depois disso vieram os terraplanismos do cotidiano, ou os terraplanismos socialmente aceitos. Chegou o dia em que alguém comentou que o horóscopo é o maior terraplanismo socialmente aceito. Será mesmo? Veja bem, mesmo não sendo importante pra mim eu não consigo mais estar num lugar e não falar de horóscopo e basicamente independente de acreditar ou não, se você precisa se socializar em 2023 provavelmente é bom decorar uma ou duas coisas a respeito. Eu vi coisas estranhas como processos seletivos de emprego que pedem o signo e ascendente dos candidatos e até estive numa oficina de roteiro recentemente em que o ministrante sugeriu fazer o mapa astral do personagem para determinar a sua personalidade. Pensando bem, essa segunda parte até que faz sentido. Apesar de tudo isso, sendo sincero, acho que bater em signo é muito 2010, o jovem entrando em uma comunidade chamada Atea e citando Richard Dawkins para parecer inteligente. Se horóscopo é uma dose homeopática de controle do caos, tudo bem, eu não me importo tanto assim, embora seja interessante perceber que é o mais bem sucedido caso de meme que saiu do controle. Ah, meme no uso da internet e não do Richard Dawkins.
Existe um terraplanismo socialmente aceito muito mais preocupante que qualquer sensação de que Marte na casa 04 fez você não se dar bem com seus pais. As evidências de seu absurdo estão em todos os lugares.
No meio de tantas notícias dos últimos dias, não sei você teve tempo para dar uma olhada em como os congressistas dos Estados Unidos estão interrogando diretores do Tik Tok pra ver se proíbem ou não o uso do aplicativo no país. Entra pra já vasta galeria de momentos mais melancólicos e constrangedores do nosso tempo, um deles pergunta, com toda pomposidade e gravidade, se o Tik Tok se conecta ao Wifi para acessar a internet. Como se fosse uma função secreta do aplicativo, se conectar à internet. Como brasileiro, isso me dá aquele retrogosto, mas não, isso não é um problema só do Brasil ou dos Estados Unidos, o mundo inteiro parece estar nessa.
Elon Musk compra o Twitter por um valor exorbitante em um tipo de pirraça e poucos meses depois a plataforma vale metade do que valia antes, quando já dava prejuízo. O dia a dia na rede social foi bem didática para o mito do bilionário genial que surgiu de uma garagem ruir.
A humanidade está naquele momento em que precisa lidar com o risco de uma guerra nuclear, a catástrofe climática, as consequências ainda não mapeadas da pandemia, o novo paradigma econômico e social surgindo a partir das IAs e da ameaça constante de novos videocasts de psicanálise e, enquanto isso, as piores pessoas estão no comando.
Por quê? Porque é justamente o lugar que a nossa sociedade reserva para as piores pessoas.
Parece ser inteligente criar mídia em cima de um jovem que faz um atentado numa escola e mata uma professora enquanto inúmeros pesquisadores já disseram que essa é a pior forma de se noticiar esses eventos? Não, mas quem decide como isso é feito são editores, não repórteres: é quem está no comando.
Parece ser inteligente colocar policiais nas escolas para tentar resolver esse problema sendo que isso já foi tentado lá mesmo, no Brasil do Norte, o já citado Estados Unidos, e não funcionou, pelo contrário, a epidemia de atentados nas escolas piorou e a moda agora é criar lousas que viram câmaras a prova de balas? Não, mas o governador de São Paulo acha uma boa ideia. Novamente, a pessoa no comando.
Por todos os lados, as decisões mais estúpidas disponíveis para um ser humano conceber parecem vencer a tortuosa corrida de ideias, por mais que a grande massa de trabalhadores se torne ou mais criativa ou mais produtiva, de que adianta sendo que o poder de resolução está na mão realmente de poucas pessoas e que essas poucas pessoas inspiram estúpidos menores que enxergam nelas um espelho?
E é por isso que eu realmente acredito que o maior terraplanismo socialmente aceito é a Meritocracia.
Olhar pra toda essa contingência lamentável e desesperadora e acreditar que esse mundo é resultado das melhores mentes disponíveis é o maior absurdo produzido em nossa era. E nesse caso, não há dúvidas, existe sim um tobogã para o abismo no fim do oceano.
notas finais praticamente interessantes
A terceira temporada de Atlanta já está na Netflix e como sempre tem pelo menos três dos melhores episódios já feitos por uma série.
O Jards Macalé lançou um single novo chamado A Arte de Não Morrer e deixo vocês com os versos iniciais:
A arte de não morrer / No tempo de todas as dores
Até sexta que vem.