A partir do século XVIII, na Alemanha, começaram a surgir apresentações fantásticas e assustadoras que projetavam imagens sinistras em paredes, vidros e fumaça. Monstros, criaturas demoníacas e fantasmas ganhavam vida diante do público horrorizado, mas, ainda assim, fascinado pelas performances do que foi chamado posteriormente de Fantasmagorias. Antes do cinema, já existiam os efeitos especiais.
Esses efeitos, que incluíam projetores, iluminação, decoração especial, trilha, efeitos sonoros e até drogas alucinógenas, não tinham como objetivo somente capturar a atenção da audiência, mas provocar emoções profundas. Sempre foi e sempre será sobre isso.
Viver é melhor que sonhar
Eu tenho profunda empatia por emocionados. Gosto, de modo geral, de quem se permite emocionar com as coisas. Não me surpreende o número de pessoas que se sentiram, de fato, profundamente tocadas pela propaganda da Volkswagen, que utiliza a imagem reconstruída de Elis Regina através da técnica Deepfake, para cantar ao lado de sua filha, a também cantora Maria Rita, enquanto ambas dirigem veículos Kombi de épocas diferentes.
Respeito o sentimento porque a publicidade, amparada por conhecimentos acumulados por séculos no campo das artes visuais e narrativas, além de descobertas no campo da psicologia, tem como objetivo principal a engenharia de emoções. Não fosse ela boa nisso, não teria razão de existir até hoje.
Se comprássemos itens puramente por fatores racionais, a propaganda da Volkswagen seria sobre aspectos do novo veículo, mas faz tempo que construir uma marca é construir um sonho coletivo. Então, tudo bem se emocionar. Profissionais competentes e com muitos recursos disponíveis trabalharam bastante para descobrir como causar isso.
Tudo bem se emocionar, se for o caso, mas devemos ter uma resposta para além disso quando estivermos conversando sobre o momento decisivo que vivemos e como isso irá afetar a nossa vida e as das gerações próximas no futuro. Sinto muito, mas sua emoção não responde à questão: determinada coisa é ética, válida ou justa? O sonho, sequestrado pelo capitalismo, é um truque de fumaça, mas quando ela se dissipa, temos que cuidar da vida real, que é quando a tela volta a virar uma parede.
Digo que estou encantado com uma nova invenção
Deepfake é uma técnica que reproduz e manipula a imagem de uma pessoa a partir de seus registros disponíveis, o que ajuda a dar realismo às expressões. Logo, quanto mais registros de alguém, melhor o resultado. Por isso, por enquanto artistas são os mais propensos a terem sua imagem utilizada com competência nisso, mas, num mundo em que todo mundo publica semanalmente incontáveis registros do próprio rosto em poses diferentes, é seguro dizer que uma pessoa com relação média com as redes sociais pode ter um dia criado o seu próprio Deepfake.
Apesar de já utilizada no cinema, de filmes da Marvel ao O Irlandês de Martin Scorcese, uma das primeiras vezes que essa técnica ganhou o debate público foi a partir da pornografia, quando usuários começaram a subir versões pornográficas de atrizes famosas, como Emma Watson e Scarlett Johansson. Ou seja, o problema dessa técnica é um assunto conhecido.
Antes completamente artificial, a tecnologia vem melhorando bastante nos últimos meses, ainda que, pra mim, toda vez que vejo um deepfake me bate o efeito do Vale da Estranheza, de estar diante de algo que tenta ser muito parecido com o real, mas que tem algumas esquisitices. O resultado com a imagem da Elis, por exemplo, cada virada de cabeça me senti no filme O Exorcista. Mas como imagem é sempre preenchida de significado, para algumas pessoas acho que esses estranhamentos não bateram ou não fizeram diferença.
A questão que importa não é só, no entanto, o realismo, já que todo mundo sabe que Elis morreu há décadas, mas, a ética do uso da imagem manipulada de alguém que já morreu. Não vou nem comentar o fato do uso da música e da ligação da montadora Volkswagen no apoio ao regime militar, porque meu ponto não é “onde” isso pode ser feito, mas se é ético ser realizado em qualquer circunstância.
Na parede da memória
Apesar da lei, até onde sei, garantir aos descendentes de uma determinada pessoa os direitos sobre o que fazer com seus pertences e trabalho, quando ouvi de muita gente que é válida a utilização da imagem de uma pessoa morta sob a justificativa de que “a filha permitiu”, isso me incomodou especialmente.
Sim, eu sei que isso já foi feito inúmeras vezes, canções de protesto vendem hambúrgueres em outra geração, revolucionários viram grife, a tendência da mercantilização é o esvaziamento, esse ponto já está colocado. A questão do Deepfake é que ela entra numa esfera mais profunda, a da cena, a da memória.
Todos nós projetamos nosso corpo no mundo, mas artistas projetam intencionalmente os seus corpos no mundo. Para alcançar o nível de realismo da propaganda, a máquina é alimentada com diversos recortes de aparições públicas de Elis. Suas entrevistas, seus shows, suas perfomances, tudo isso está imbuído naquelas expressões coladas no corpo de sua dublê, que dirige a Kombi. Isso não é o equivalente a produzir uma ilustração de alguém, ou remixar sua música e vender pasta de dente. É usar a história viva de alguém para alimentar um truque.
Quando Elis deu sei lá quantas entrevistas ela não sabia que ali, sua imagem, um dia seria utilizada no corpo de outra pessoa, para emocionar expectadores numa peça publicitária. Quanto Elis cantou em sei lá quantos shows, ela não sabia que, ao sorrir, esse sorriso seria capturado anos depois de sua morte e utilizado num comercial. São momentos da história da vida dessa pessoa e o que penso é o seguinte: ninguém tem direito à sua história.
Ninguém, nem seus filhos, nem sua companhia pra vida toda, ninguém tem direito a sua história além de você. Não vimos a representação envelhecida de Elis, algo talvez problemático, mas uma elaboração estética. Vimos a Elis jovem, fabricada a partir de múltiplos retalhos de sua vida, construir um fantasma. A ética não está só em se perguntar quem tem direito a sua imagem, mas sim, em quem tem direito à sua história. E, no caso de um artista, imagem é história.
E as aparências não enganam, não
Não critico a atitude dos filhos e a Maria Rita tem a autonomia para escolher se vale a pena participar de algo, levando em conta que provavelmente deve ter sido um caminhão de dinheiro envolvido nesse processo. Eu não condeno uma artista topar ganhar dinheiro porque não cabe a mim moralizar o trabalho de ninguém - no fim, só gente com muito privilégio só trabalhou com o que quis a vida toda.
Há um tempo, Tom Zé foi criticado por narrar um comercial de Coca-cola, como se ele tivesse traindo suas convicções ou uma bobagem assim. Um argumento tosco, mas ainda que fosse verdade, o Tom Zé vivo teria toda a liberdade para trair suas convicções se fosse o caso, porque a Tom Zé cabe a história de Tom Zé.
Não sei se Elis toparia participar do comercial, nem nunca vou saber. Também não cabe a mim dizer que relação uma pessoa deve ter com a memória de sua mãe, mas cabe a nós como sociedade superar o efeito da emoção e pensar que implicações existem na abertura da possibilidade de trabalhar desse modo a imagem de alguém morto.
Aos emocionados, entendo perfeitamente, mas compreenda que o horror também é uma emoção. E eu estou horrorizado com o futuro que estamos construindo para o mundo. Eu acho uma atrocidade a gente usar o argumento do “se achou ruim é só não ver”, “se achou ruim é só não consumir”, como se não consumir algo fosse a única oposição possível num mundo onde tudo é produto.
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua é que se fez o seu braço o seu lábio e a sua voz, mas imagine o poder absurdo, inédito, de recortar isso, sua história, te botarem sem te consultar para dirigir um carro que você nunca viu, usar roupas que nunca escolheu, dizer coisas que nunca disse.
O novo sempre vem, o truque é fascinante, vivemos em uma época fascinante de perguntas fascinantes e em que ninguém tem ainda uma resposta pronta. Mas eu não vejo um bom caminho ao perdermos o direito à nossa história, boa ou ruim, controversa ou virtuosa. Eu é que tenho direito de contar tudo o que eu vivi e tudo o que aconteceu comigo. Não respondo pelos meus fantasmas e suas emoções.