Desimportante, irritante e entediante
Ou beleza, mas você não deveria precisar de uma IA para aprender a cozinhar um arroz.
Talvez essa distopia que vivemos por enquanto tenha menos o gosto de Mad Max e mais um jeito de comédia familiar com moral genérica, por exemplo Click, aquele filme em que o Adam Sandler consegue um controle remoto fantástico que pode pular, pausar e acelerar a vida real. O fato desse filme ser realmente algo à frente de seu tempo, diz muito mais sobre a sociedade tecnológica em que viemos parar do que sobre a obra. Se me lembro bem, o personagem vivido por Adam Sandler consegue com esse aparelho gerar uma espécie de programação, um algoritmo do tempo, em que escolhe pular as partes desimportantes, irritantes e entediantes da vida, o que por consequência faz com que a própria vida em si se encurte consideravelmente, afinal, a maior parte dos nossos dias é, ou parece ser desimportante, irritante e entediante. Essa experiência fragmentada da realidade não só resulta em um tipo de envelhecimento precoce, mas também no embotamento do prazer da própria vida.
Geralmente crianças experimentam esse objetos mágicos de onde surgem coisas, comida, água, um ou outro brinquedo e até adultos. São mágicos pois na perspectiva da criança surgem de lugar nenhum, mamadeira, touca de crochê, penduricalhos. Bem, entre as muitas marcações da maturidade está a perda de objetos mágicos. A água, a comida, as roupas e penduricalhos não surgem de lugar nenhum, é preciso uma série de condições e esforços para que tal coisa esteja em tal lugar em tal tempo.
Você descobre que é adulto quando a geladeira deixa de ser uma caixa especial e vira um eletrodoméstico que você precisa parcelar o maior número de vezes possível para não estourar o cheque especial e além disso precisa ser abastecida de tempos em tempos por coisas que também precisam de uma série de ações e esforços para serem produzidas, distribuídas, adquiridas e transportadas até a geladeira, sendo que boa parte delas terá que ser preparada depois com uma variedade de técnicas, até que virem algo que guarda alguma semelhança com o que podemos chamar de refeição.
É, tudo isso parece ser muito complicado colocando dessa forma, mas a parte boa é que podemos curiosamente aprender coisas. Temos um cérebro capaz de verificar padrões, conectar elementos, produzir sentido e significado, ainda que no fim você vá jantar arroz parcialmente queimado com salsicha quase derretida na leiteira que você improvisou como panela. Podemos nos interessar por algo e aprender algo mais sobre arroz e salsichas e calor e enfim, dieta básica e melhorarmos dentro do possível. Mas grande parte desse processo de aprendizado será de etapas que parecem desimportantes, irritantes ou entediantes e todas elas levam um tempo.
Eu poderia chegar agora com o discurso de “você precisa tirar um tempo para aprender coisas”, mas eu sei em que estágio do capitalismo estamos, então não se preocupe. Agora que atingimos níveis absurdos de produtividade, que a vida toda agora é tomada por telas que convocam o consumo ou a produção de conteúdo, agora que a experiência do tempo em si é mais do que sequestrada, é colonizada, retirada de suas propriedades e alterada para se tornar um tipo de capital (tempo de tela, tempo de atenção), e todo mundo está nessa, como esta newsletter, agora sim o grande produto na vitrine é o tempo.
O tempo como produto surge em embalagens Comodidade, Produtividade e Simplicidade. Agora ficou fácil (complete), é a frase de lançamento da maior parte de soluções tecnológicas, com o complemento: agora você pode ter mais tempo para (complete). E esse mais tempo nunca vem. O tempo salvo é um lugar onde nunca se chega.
Isso é um papo relativamente antigo, mas agora temos uma atualização do tempo-produto que surge como o resgate de um objeto mágico. Estamos falando das IAs e especialmente dos modelos de conversação natural, popularizados pelo Chatgpt, da Open AI. Estou acompanhando de perto essa febre, não como um crítico distante, eu consumo e me interesso muito por tecnologias em geral. Na verdade, não as tecnologias em si, mas a relação que estabelecemos com elas - no fim, o que me interessa é o humano.
Se um tecnologia é boa ou ruim, isso depende especialmente do contexto, da estrutura social e do nosso modelo econômico. Acho especialmente divertido como Youtubers e influencers tentam engajar a audiência com frases do tipo “Tal tecnologia vai MUDAR TUDO”. Sim, a tecnologia, esse objeto mágico de onde saem mudanças. Porque tudo o que o mundo precisava era mesmo poupar tempo com e-mails. Mudar tudo sem mudar os fatores estruturais, isso sim me parece um controle fantástico.
Peralá, não estou criticando o uso, inclusive, que ótimo, porém a promessa feita por essas empresas que apostam em IA é de que agora, na prática, você não precisa mais aprender coisas, você precisa somente querer coisas e as IAs farão tudo por você.
Eu realmente acho que IAs não precisam ser extraordinárias para tomarem empregos das pessoas, afinal, na lógica do lucro, compensa mais gerar 100 trabalhos medíocres em 5 minutos do que um trabalho excelente em 100 horas. Não se engane, a IA pode realmente não escrever coisas de alto nível, mas não precisa. Para além do provável avanço da precarização do trabalho, existe outra questão que retoma o começo desse texto, a precarização da experiência da vida em si.
A parte desimportante, irritante e entediante da vida é uma etapa das coisas que constituem o que somos, os acasos que geram conexões improváveis, a criatividade, o prazer e o espanto de se descobrir aprendendo algo, agindo sobre algo dentro da realidade. Sim, a IA pode produzir uma batida em poucos segundos pra você colocar na sua música e emular todas as notas do violão, mas, se houver a possibilidade, não desista de aprender.
Se irrite com não conseguir fazer a pestana, uma, duas, trinta vezes e se maravilhe quando se ver conseguindo. Queime o arroz tantas vezes e sinta o sabor único quando acertar o ponto a primeira vez, esse arroz não terá nada em especial para ninguém, mas para você terá o gosto de todas as vezes que você insistiu na ideia.
Esse texto não traz uma solução ou pacto para lidarmos com a produtividade em escala IA e a automação de processos. Nem o próprio cérebro é um objeto mágico, ele é a composição de elementos, fatores e condições. Ele reage, se alimenta, se esgota. E é nele que a nossa percepção do que chamamos de tempo se produz.
Eu não estou falando de planilhas e anotações de reunião, eu estou falando sobre se deixar assombrar pela capacidade impressionante do cérebro de aprender. No nosso contexto social e econômico, sim, a gente vai ter que aprender a trabalhar com IAs por isso, aprenda, se organize e, inclusive, se possível, ensine. Mas não desista de aprender a escrever melhor porque agora você pode produzir um livro apenas digitando um prompt. Não importa se a IA tem a capacidade de reproduzir todos os estilos literários do mundo, a sua forma de escrever não nasce somente da gramática, mas de todas as experiências de vida que você viveu. O meu arroz com salsicha é mais relevante para este texto do que as regras gramaticais que eu domino. Não desistam de aprender sobre as coisas, de estar nesse mundo, de ser esse mundo.
E se quiser pedir para uma IA reduzir esse texto em um parágrafo, tudo bem. Posso até facilitar o processo: não existe o tempo que sobra, existe o tempo que se vive.