Eu não lembro bem quando comecei a escrever ou senti que poderia, nem o que me fez insistir exatamente nessa ideia entre tantas outras. Na verdade eu me estranhei (estranhei mesmo não entranhei) em muita coisa por aí, tive banda e a convicção de que poderia viver disso, tive a meu arco pelo teatro vocacional, cheguei a adaptar O Cobrador do Rubem Fonseca e foi nessa época que conheci Guimarães Rosa, numa adaptação de Sorôco, sua mãe, sua filha. Também me apaixonei, como sou apaixonado até hoje, pelo audiovisual, me formei nisso, aprendi roteiro, edição, produzi até um curta independente que nunca cheguei a lançar (e chamei minha ex-professora de teatro, mais de dez anos depois, para um papel especial, como um espírito).
No entanto, ressonâncias da escrita sempre estiveram presentes em tudo que me estranhei, eu sempre encontrava um livro novo, alguma coisa que fazia sentido, qualquer que fosse. Só que, antes de fazer sentido, deu tudo errado. Ou não exatamente errado, deu o que tinha que dar. A banda acabou conforme mudanças, trabalhos e distâncias. O teatro acabou no mesmo caminho. O audiovisual parecia que tinha acabado depois da faculdade e não conhecia as pessoas para me dizer as portas certas para conhecer as pessoas mais certas ainda - que é como funciona essa área. Mas para ser justo hoje eu vivo de podcasts, tenho trabalhos no cinema e estou escrevendo meu primeiro longa-metragem.
Mas o que me levou a ser redator, roteirista e profissional da área de audiovisual não foi a faculdade, obviamente, foi a escrita, que, mais de 5 anos depois de eu me formar, quando estava aceitando a opacidade do que poderia ser a minha vida, num giro improvável, me trouxe de volta para, pelo menos, as mínimas chances. Escrever em grande medida é viver das mínimas chances.
O livro Marmitas Frias, de 2017, foi escrito por alguém que tinha certeza de que seria esquecido em cinco minutos. Foi uma carta de apresentação e de despedida, arrisco dizer que foi uma autopsicografia, se estivesse vivo hoje essas são as coisas que eu queria ter escrito - o sentimento era esse, não era vingança, porque inclusive li isso na Flip, sobre escrever para se vingar, eu não escrevi o Marmitas por vingança, eu escrevi porque não podia me vingar. Eu queria me livrar o mais rapidamente possível do que parecia, pra mim, ser uma fantasia.
Minha primeira mesa, com Marcelino Freire e Paulo Lins, na véspera de um feriado, foi um desastre. Particular, é claro, não um vexame em praça pública, mas disse lá que as pessoas deveriam comprar o livro pela capa e que, de brinde, vinham histórias dentro. Eu não sei o que aconteceu com a Lamparina Luminosa, que me publicou e que, mesmo com o livro esgotado e com muita procura, não se interessou em relançar.
Pode ser que talvez eu tenha parecido meio ingrato ou displicente, mas eu só era incrédulo, ressabiado, a vida é que não vai meter essa agora de que eu sou escritor, vá se foder. Eu é que me fodi porque aqui e ali o caminho do livro, que é só dele - alheio a todas as tendências do mercado e seu olhar de funil - foi sendo feito e me revelando um conceito muito interessante chamado dignidade. A escrita, dentre todas as coisas que faço de longe, mas de muito longe, é o que me trouxe mais dignidade. Dinheiro não muito, nem sei contar quantos livros teria que vender para pagar um mês de aluguel, todo mundo sabe, essa história é mais ou menos igual (embora alguns autores não tenham tido a ansiedade de refletir sobre como pagar o aluguel). No entanto, a dignidade é outra parada. Quando eu tô destituído de mim mesmo, em um ciclo de amargura e ressentimento, quando na prática eu tô ferrado e não sei o que posso fazer para dar conta de qualquer coisa que seja, é na escrita que alguma coisa acontece.
A escrita não tenta me convencer de nada, ela só está ali, é algo que me parece possível. Quando me pergunto por que eu escrevo, a resposta mais sincera é tão somente essa, me parece possível e eu faço.
Os Dias Antes de Nenhum foi uma diversão divergente. Para dizer assim: “se houver uma cadeira reservada para um autor tal, que fala da periferia de uma maneira tal, é melhor caçar um sofá bem largo, porque eu estou interessado em me folgar”. Pelo preço que se paga é o mínimo você se sentir confortável, folgado mesmo, com todo o respeito, com a sua escrita. O Dias me tirou do estado do choque e me trouxe o aprendizado do tempo e da confiança no livro. Um livro é um objeto sempre prestes a ser encontrado. E é o Dias que foi parar nas bibliotecas de escolas, virou trabalho, virou tese, pintura de portão. Agora estou aqui mesmo, foi assim que conversei com essa história.
O Quem É Essa Gente Toda Aqui foi um truque. Um livro de crônicas disfarçado de ensaio, mas de certa forma também teve um papel muito importante de me revelar que a escrita não está lá dançando sozinha na parada, tem as ideias, a minha voz, as experiências, o jeito de contradizer ou confirmar as tensões do mundo, tem afinal de onde vem a escrita, tem eu achando as coisas, como aqui, nessa Newsletter. Foi importante também porque foi lançado durante a pandemia, quando tanta gente ficou minúscula, um fiapo de nada prestes a sucumbir ou ver o mundo sucumbir.
Por fim eu fui tratando de tantas outras coisas que foi parecendo que escrever era uma vida paralela. O número de pessoas que me seguiam nas redes era muito mais por conta de outras coisas do que por causa da minha escrita. Há pessoas que perderam a referência de mim, lembram vagamente meu nome da época das crônicas no Facebook e coisas assim, que escutei muitas vezes. Resolvi abrir esta newsletter. Como vocês devem ter notado, eu mal consigo divulgar ela, quebro todas as regras das boas práticas, não tenho periodicidade nem call-to-action, no entanto já tenho centenas de leitores que tão me descobrindo ou redescobrindo por aqui.
Aqui eu fico espaçado.
É por isso que é por aqui que primeiro farei um convite a leitores que estiverem em São Paulo na quarta-feira que vem, dia 23/10. No mercadinho simples, da Livraria Simples, que fica na Rua Rocha, número 416, Bela Vista/SP, a partir das 18h, lançarei o meu quarto livro: “Brincadeira Sem Futuro”, um livro de crônicas que poderiam ser chamadas de “formação”, mas que vou chamar aqui de crônicas de estranhamento, um outro jeito de falar sobre atravessar a infância e adolescência e crescer.
As palavras também brincam com a gente e veja, vingar também é o nome que se dá para algo que permanece. A criança vingou, não morreu, está viva. Eu escrevia porque não podia me vingar, agora escrevo porque vinguei.
Estarei lá pra assinar alguns livros e dar abraços e não vai ter bate-papo não, só DJ. Porque mais do que me vingar, eu quero estar de folga.
Venham e estranhem-se.
Até lá.
Que livro, senhoras e senhores! <3
vingar tbm um jeito de se vingar 🤍