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Nada escapa da dimensão do tempo, nada existe para fora dele. Um pensamento sobre o tempo está inserido em um instante, a ascensão e queda de um império, de uma espécie, de uma linguagem, tudo está rodando no disco temporal.
Curiosamente esse disco vai ganhando nitidez quanto mais o tempo passa, ou melhor, quanto mais deslizamos sobre sua superfície. Na infância o tempo é espuma que vai virando areia com o passar dos anos.
Como todas as desgraças e maravilhas ocorrem em algum lugar dentro do tempo (e é dentro dele que está tudo o que está entre a pior coisa que pode acontecer e a melhor coisa que pode acontecer), tentamos organizar e entender nosso espaço nessa vastidão.
Claro que existe a limitação óbvia da Finitude, que já nos dá a primeira margem. O nascimento é quando começa o risco da nossa faixa nesse disco. Quando termina não sabemos ao certo, às vezes sentimos que estamos ainda na introdução dos acordes, às vezes que atravessamos a ponte para o coro final.
Mas há outras margens dentro desta maior. Fases da vida, aniversário, ocupações, estações, meses, semanas, dias, instantes. As mínimas porções de tempo - achamos que conseguimos até segurá-las como quem fecha a concha das mãos na praia.
E é justamente por esse tempo concreto, cotidiano, organizado na produção diária, que agora olhamos a vida. Ele é um pequeno orifício na parede, por onde passaria uma formiga, e é por ele que tentamos enxergar o horizonte do tempo que nos resta, mas vemos apenas um grande borrão.
Este ano cada vez mais parecido com outros, este dia cada vez mais parecido com outros, estações quase indistinguíveis, a nova reunião, a espera pelas férias, o feriado, essas divisões dinâmicas todas inundadas pela urgência da falta de interrupção. Ou melhor: pela falta de margens.
“Vamos arrumar um tempo”, a gente promete a amigos que, cada vez mais, veremos apenas uma vez por ano. As plantas amarelas reivindicam alguns minutos para hidratação, vamos arrumar um tempo. Aos 40 anos você ainda precisa aprender novas profissões e habilidades e, claro, vamos arrumar um tempo para isso. Ligar para os pais, quem sabe, visitá-los: “arrumamos um tempo”. Arrumar tempo para cozinhar e até para beber água. Arrumar tempo para ler, arrumar tempo para ficar parado tentando observar o tempo.
Eu vivo dizendo que preciso arrumar tempo, mas mesmo a tentativa de arrumar tempo está dentro da dimensão do tempo. Não dá pra sair, é como tentar arrumar a cama estando em cima dela. É por isso que recentemente eu desisti de arrumar tempo.
Aplicativos de organização de tarefas tentam empilhar o tempo e torcer para que essa torre improvisada fique de pé. Eu achei que tinha melhorado minha relação com as coisas, mas continuei sem conseguir arrumar tempo, porque a planta não se hidrata por virar um item no meu calendário. Quando eu a observo e a vejo murchar, esse é o tempo, essa é a margem.
Mas a hiperprodução gerou a exaustiva tarefa de tentar organizar o tempo livre, o descanso virou uma nova etapa do trabalho e não um intervalo, esquecemos que antes dos relógios a gente simplesmente olhava para as coisas.
Você entra em sites de textos e agora tem o tempo estimado para leitura, dando um caráter econômico para o tempo que nada significa para sua experiência. Este texto vai lhe custar tantos minutos. O preço por ler este texto em minutos. Por esse mesmo valor existem opções bem mais viáveis, como responder tantos e-mails, consumir tantas fotos no Instagram, ver tantos vídeos no Tik Tok. É um mercado subjetivo insustentável.
O like não é uma solução de design de interação, mas uma proposta de mercado do tempo. O esforço mínimo no menor tempo possível, que não nos atrapalha em outras funções e torna possível, para nós, sustentar a ilusão de que arrumar tempo é isso. O tal capitalismo tardio é apenas a colonização do tempo.
O trabalhador de aplicativo tem sua hora de trabalho determinada por um algoritmo em que ideia de tempo disponível se borrou com o tempo de ócio. Ninguém no futuro vai querer cozinhar, diz o presidente do Ifood. O seu tempo de cozinhar não é mais seu, agora este tempo é gasto escolhendo sua refeição e esperando ela chegar. Isso é a colonização do tempo.
Arrumar tempo, dentro da nossa lógica social, significa empilhar tarefas até você chegar à conclusão de que não tem tempo porque para sobreviver precisa produzir mais em menos tempo e então, com o tempo restante, produzir mais e isso involuntariamente passa por valorizar marcas e plataformas cuja principal função é colonizar o nosso tempo e que agora servem como intermediárias de todas as nossas relações de trabalho, de amizade e até nossa relação com nós mesmos.
Estou nesta dança, como todos nós, trabalhadores. Dentro de um ruído que não é mais nada, não comunica mais nada. No entanto, usei um tempo para escrever este texto que não foi arrumado antes. Embora esse texto também seja conteúdo e produção, eu poderia ter produzido muitas outras coisas no tempo em que o escrevi. Essas coisas continuarão desarrumadas enquanto estou por aqui.
Sempre que possível eu não quero arrumar tempo, eu quero desarrumar tempo. Eu quero voltar a olhar pras coisas e perceber se uma planta está murcha, se há olhar de saudade de conversa entre minhas pessoas queridas, se o mar avança ou recua, a temperatura do vento. Eu quero deixar um texto ser lido por mim. É até poético que quando uma experiência é muito boa ou significativa, hoje em dia dizemos que “perdemos a noção do tempo”.
Agora, no mês em que faço 39 anos, seja lá o que isso significa em termos de espuma ou areia, eu quero desarrumar o tempo e reencontrar minha música novamente.
Felizes somos quando temos a sensação de que ganhamos no tempo quando lemos algo. Obrigada.
Isso foi lindo.